- a família mata
  a família mata
Era o início dos anos oitenta e enquanto o país ameaçava de novo, ser uma verdadeira democracia, eu conhecia uma jovem do interior paulista que me cativou e que definitivamente mudaria a minha vida.

Com o tempo, descobri que ela era só a ponta visível de uma massa desgovernada, composta de personagens pitorescos, conservadores e, sobretudo, alheios ao mundo moderno que existe além das fronteiras da sua cidade.


Respondem pelo nome de Mata, família tradicional do interior, minha única e autêntica fonte de inspiração, apesar de que muitos dos leitores possam ver-se refletidos nestes relatos. Mesmo se tratando de uma visão pessoal dos fatos e das pessoas, cabe advertir, pode chegar a estar muito próxima à realidade.

Faz alguns meses, assistindo uma série na televisão espanhola, não pude evitar reconhecer uma bem humorada versão dessa família, que incluía um acuado genro, marginalizado e castigado pelas artimanhas do resto do grupo.

Finalmente decidi escrever aquelas aventuras guardadas na memória, emprestando o título da série para substituir o verdadeiro nome da família, e com uma descarada intenção terapêutica ou até mesmo, exorcizante.



Entrando para a família

Confesso minha escassa habilidade para lidar com as relações familiares e reconhecendo minhas carências na matéria, procurei sempre vestir meu melhor sorriso na hora de comparecer às reuniões da familia Mata, fosse o motivo um nascimento, uma morte ou algo menos espetacular.

Num dos primeiros passeios pela praça da cidade, mãozinha dada, demos de frente com uns primos distantes ou algo assim, que me olharam de cima em baixo, antes de fazer-me as tradicionais perguntas: O que faz? De que família é? Confesso que para um paulistano, convicto desconhecedor de vizinhos, aquela abordagem causou um forte impacto. Mas que diabos, apaixonado, albergava certa euforia pela nova sensação de, finalmente, pertencer a um clã e já estava pronto para dissuadir a mim mesmo da que fora a minha única verdade sobre a família até então - um amontoado de relações, forçadas pelos laços de sangue, fruto da conveniência e da pouca possibilidade de escolha.

Respondi às perguntas daqueles senhores com a maior cordialidade que me foi possível e seguimos nosso passeio, disposto e satisfeito por ser recebido pelo meu novo grupo, a família Mata.



Toda donzela tem uma mãe que é uma fera

Mochila nas costas e muita ansiedade, era minha bagagem de todo fim de semana. O encontro, o abraço apertado, os beijos apaixonados e toda a minha atenção, exceto naquele fim de semana. Como sempre, ela foi me receber no portão e, aquele dia, beijei-a de forma burocrática, sei disso. Obsessivo na minha busca, apressei o passo, direção ao terraço do fundo onde costumava estar pitando seu inseparável cigarrinho e lá estava ela: minha futura sogra. Passei toda a viagem no Cometão, tentando reconstruir sua imagem na minha mente, temeroso da impiedosa previsão de um colega de trabalho que prometeu ensinar a todos, o segredo de enxergar o futuro, nada mais nada menos, da cara-metade. Bastava dar uma boa olhada na mãe dela, agora e voilà. Que sufoco! Mais complicado do que tentar encontrar alguma graça naquela mulher áspera e seca, foi passar o resto da semana. Mas, a semana passou e assim, o fim de semana, as semanas seguintes, os meses e os anos. E a única coisa que eu posso dizer é que aquele colega do trabalho, semblante carregado da autoridade conferida pelos anos vividos, estava enganado.



A borrachinha arrebentada

A minha sogra sempre esteve disposta a ajudar os seus, isso sim, sempre e quando estes aceitassem viver suas vidas exatamente do jeitinho que ela tinha decidido que eles vivessem, nem que para isso fosse preciso mudar os planos feitos com seus novos companheiros. Na verdade, se você está disposto a ser um passivo herdeiro profissional pode ser uma forma cômoda de viver, mas garanto, a sensação é a de vender a alma para o diabo. As ajudas podem ser ilimitadas, desde que o pacto seja firme.

Minha cunhada mais jovem é a famosa borrachinha arrebentada, sua chegada não estava nos planos e pegou os pais já cansados dos quatro mais velhos, já meio domados, tolerantes ou talvez resignados Ela aproveitou para fazer tudo aquilo que os irmãos não puderam fazer, inclusive engravidar prematuramente, forçando a convocação do tribunal dos Mata para decidir a condena do culpado, playboy interiorano mimado e duro na queda. Decidiu-se pela união religiosa e tudo mais, mas o botina roxa fazia alarde de sua independência, orgulhoso da própria autonomia acabou dando de frente com ela, a matriarca permanentemente vestida de boa alma. Enquanto durou a guerra fria, o rapaz só alcançou fracassos. Tentou vender, fabricar, importar, exportar e perdeu tudo, foi à falência, ficou sem dinheiro até para o supermercado. Ou seja, no pontinho para receber toda a misericórdia dos Mata. Tudo começa com as compras do supermercado, com a consequente perda do direito a escolher livremente os produtos básicos que a jovem família teria na sua despensa. Sem crédito na praça, na hora de comprar uma máquina de lavar roupa o inexperiente casal não resiste a aceitar os três chequinhos da benfeitora: “Prometo que eu pago tudo”, entoa quase sem convicção nem orgulho próprio, o já indefeso pardalzinho prestes a derrubar sobre si mesmo o peso da gaiola. Já é um caminho sem volta, a natureza operou seu milagre e voltou a soldar o cordão umbilical, de que agora pendem além do feto original, marido e três rebentos.

Recapitulando, os Mata decidiram pela união nupcial dos jovens para salvaguardar a honra da família. A falta de anos de experiencia fez que os jovens fracassassem na tentativa de serem independentes ao que os Mata reponderam com uma nova lição de vida, indo ao supermercado, onde o único gênero que não puderam comprar-lhes de volta foi a dignidade. Por muito que possam parecer parte de um inverossímil roteiro de novela barata, eles existem de verdade e seguem jogando nos dados, o destino de quem o permitir. Tudo em família e segundo os mandamentos não escritos dos Mata.



O Mata da foto

Na dúvida, prefiro ficar com a imagem generosa e simpática do único Mata contemporâneo que não cheguei a conhecer, mas que tratou de me mostrar a sua neta. É verdade que existe uma tendência a idealizar aqueles que deixaram a proximidade do nosso círculo de relacionamento. Estamos acostumados a estilizar para poder compreender, recortando sempre traços importantes tanto da personalidade como do comportamento dessas pessoas, reduzindo-os a parcas lembranças de conveniência. Assim mesmo, desconfio de que a impressão que carrego do velho Mata tem muito que ver com o que foi na realidade.

Contador de profissão, de escassas pretensões pessoais, sempre foi descrito por sua própria família como um homem sério, trabalhador, atencioso e paciente com os netos, aos que costumava levar para longos e agradáveis passeios. Tolerante com uma esposa cheia de caprichos, acabou perdendo o emprego de uma vida inteira por culpa da sua honestidade, por não se deixar corromper, algo que ao que parece, sua própria família não chegou a compreender, nem perdoar. É possível que essas circunstâncias tenham sido determinantes na formação do perfil ambicioso e materialista do filho, ou seja, meu sogro, permanentemente atento às oportunidades para tirar proveito de algo ou de alguém.

A viúva, elegante e altiva, sempre me recebeu com carinho, cozinhando quitutes especiais, talento que a sua neta herdou e até aprimorou. Quando o marido morreu, já moravam há anos num quartinho no fundo da casa dos meus sogros e aí seguiu a senhora, depois de enviuvar, desde onde e com a cumplicidade do filho, brandia uma autoridade encoberta, para desespero de uma cada vez mais desmoralizada nora, que viu sua vontade minguar dentro da própria casa. Suponho que isso explica em parte seus métodos obscuros, frios e calculistas, próprios de quem padeceu a solidão em meio à multidão familiar.

Enquanto isso, a viúva do velho Mata projetava seus desejos de grandeza em direção ao seu eleito, o neto primogênito, a quem ela não descansaria sem ver convertido no respeitável Doutor Mata, como redenção aos anos em que, como faxineira do centro de saúde municipal, teve de suportar os intermináveis e orgulhosos desfiles de fardas brancas.



O poder da farda branca

Em muitas partes do mundo, ao ver alguém todo vestido de branco, supõe-se um pintor, um padeiro ou, quem sabe, um açougueiro, que, longe de estar reconhecível para atender urgentemente a uma parede que pede retoques, uma fornada de pãezinhos ou meio quilo de alcatra, o mais provável é que o sujeito em questão, simplesmente, não teve a chance de trocar de roupa. Já os médicos, terminada suas jornadas de trabalho, desvestem o avental branco e voltam para casa, possivelmente usando o metrô e trajando o anonimato a que tem direito.

Na cidade dos Mata, os médicos - e dentistas - seguem desfilando reluzentes trajes brancos, possivelmente, na tentativa de usurpar o prestígio daqueles que, em tempos de estruturas rurais pouco letradas, além de curar, aconselhavam e se ocupavam de todos os assuntos de certa complexidade, fora do alcance da maioria dos concidadãos.

Este prólogo serve-me para introduzir o próximo personagem, sem dúvida, o mais enigmático e difícil de descrever dentre os Mata, uma resultante direta da combinação das vontades ancestrais e das necessidades pessoais de vencer certa desconfiança relacionada com a própria insignificância. Por ambos motivos, sua obsessiva necessidade de se transformar no “doutor” Mata, atividade que, por outro lado, nunca chegou a realizá-lo profissionalmente. Pelo último, a importância de chegar a ser um latifundiário, dentro da estrutura social atemporal à que já me referi. E, como purgatório das culpas do mercadejo de velhos autos ou de desvalorizadas propriedades periféricas a pobres diabos ou viúvas desvalidas, tão tradicional entre varões Mata, a religião.

Vamos por partes. Associar a prática da fé ao progresso econômico parece ser uma tese cada vez mais aceita, não só entre os crentes evangélicos que sempre propagaram essa idéia abertamente, como também entre os novos convictos da fé católica brasileira, uma grupo religioso muito particular, cada vez menos fiel às origens e produto de um sincretismo característico dos trópicos. Se são presumivelmente incompatíveis ganância, mesquinharia e a fraternidade cristã, não é menos certo que além de ser o mais seguro dos salvo-condutos do lobo até o interior da rebanho, o rito religioso é uma das poucas possibilidades para marcar terreno em sociedades como a dos Mata e com a vantagem de fazê-lo como o bom samaritano, como o cidadão acima de qualquer suspeita.

O doutor Mata reproduz perfeitamente a sua herança genética, juntando à ganância, a frieza calculadora e acrescentando de sua parte, um refinado aspecto de respeito que o faz inquestionável para suas vítimas e para a própria família, silenciosa, resignada ou, quem sabe, cúmplice na hipocrisia.



Credo
Crer é uma possibilidade, pode ser uma opção ou, até mesmo, uma necessidade.

Lembro bem de um professor que nos disse uma vez, em classe: "não posso viver sem crer em algo, em alguém e por isso creio em Deus". Estávamos discutindo Nelson Rodrigues. Era o professor mais respeitado, austero e vocacional. Fantástico. Pensei naquilo durante anos, até o ponto de questionar meu já bastante consolidado ceticismo e aumentando consideravelmente a pressão, a chantagem a que nos tinha submetidos a igreja católica. Anos mais tarde, compreendi que todos tínhamos direito aos nossos erros, às nossas fraquezas e que delas também se compõe a nossa força. Lembro-me que isso fez parte do memorável processo de relaxamento da minha auto-exigência, com a que foi possível ampliar minha perspectiva.

Bem, mas isso agora não vem ao caso, que é a introdução aos Mata e sua relação com a crença. Comecemos pelos freqüentadores de missa. Na cidade dos Mata, a catedral fica estrategicamente no centro da praça principal, bem à vista dos vigilantes da moral e bons costumes. Lá, é muito importante ser visto cumprindo religiosamente, como crentes ou como respeitáveis integrantes de uma sociedade implacável nas suas normas morais. Escrevo isso e penso no meu concunhado, profissional liberal de certo respeito, a tradição encarnada. Nem passa pela sua cabeça transgredir. Bom sujeito até, honesto e trabalhador e, por isso a maior vítima da mofa dos Mata. Tratam-no de idiota e de mesquinho o que, em se tratando do meu sogro, convenhamos, é como mínimo, paradoxal. O caso é que o meu quase parente em questão cumpre dominicalmente as obrigações religiosas, fazendo disso um compromisso familiar, outro dos aspectos que cuida com maior competência que o nosso comum sogro, cujas convicções ou, quem sabe, a falta delas, fizeram-no seguir, ao longo de sua vida, uma série de messias eventuais, aparentemente, numa tentativa desesperada de ser capaz de crer.

O mais notável foi uma espécie de curandeiro que, ao parecer, criara uma versão "cardecista" provinciana e simplória. Contam os filhos que meus sogros - ambos - chegavam a desaparecer durante dias, semanas inclusive, investidos nos papéis de imediatos de guru. Naturalmente e como em outros tantos casos, este milagreiro também foi efêmero, a crença murchou, aquela onda passou e meu sogro teve que procurar outra desculpa para evadir-se das responsabilidades da paternidade. Nenhuma outra foi tão forte como esta, talvez pelo malogro ou pelas seqüelas que provocou, algumas por séria negligência e cujas conseqüências perduram. Eu mesmo cheguei a testemunhar o surgimento de uns quantos guias espirituais, fossem um híbrido de macrobiótica e rosa cruz ou certa ramificação templária, todos tinham em comum a falta de exigências de prática ou habilidade, bastava seguir dez ou doze dogmas, estar vazio de motivação, carente de interesses ou farto de responsabilidades.

Na cidade dos Mata, as atividades culturais escasseiam. Não faltam templos, salas de culto, grupos sectários de origem medieval, como se as pessoas precisassem de intermediários para relacionar-se, como se para se entenderem dois seres humanos, fosse necessário um ente tradutor. Talvez os deuses possam e devessem mesmo estar presentes na história da humanidade e, até quem sabe, para alguns possam trazer uma sensação de conforto à existência. O que talvez seja difícil de entender é que o culto a esses seres possa roubar o tempo do relacionamento entre seres humanos. Porque uma prática preestabelecida, baseada em dogmas, parece-me, peca de previsibilidade e deixa de permitir o assomo de milhares de matizes de que só são capazes os surpreendentes "pecadores" seres mortais.



"Meu genro de São Paulo, meu genro da Espanha"
Não que eu pretenda ter minha capacidade premonitória reconhecida a esta altura, mas acredite quem quiser, sempre soube que uma distância prudente dos Mata era a única chance de sobrevivência. Por isso, sempre me empenhei em que o nosso contato fosse acidental. Que nos separassem, ao menos, quatrocentos quilômetros. Como inconveniente que, durante muito tempo, sempre fomos o destino favorito das excursões deles. Os sacoleiros da 25 de Março, a cunhada caçula durante os três meses de férias escolares, o cunhado que queria ser "sordado", a sogra farta do sogro ou o sogro farto da sogra.

Eram épocas de vacas magras para todos, mas em que, podendo ainda enxergar toda a vida pela frente, mantinhamo-nos dóceis no trato ou, dependendo do ponto de vista, um pouco idiotizados. Mesmo assim, posso garantir que a eventualidade remediava uma convivência natimorta. Os anos tratariam de tirar minhas remotas dúvidas e um ano de convívio, morando na mesma cidade, de deixar seqüelas definitivas. Antes disso, e com hercúleo esforço, fui capaz de preservar a distância, mantendo-os durante anos na minha sala de visitas ou, como muito, no quarto de hóspedes. Quando conseguiram invadir a cozinha e, definitivamente, a intimidade do nosso quarto, os estilhaços chegaram a salpicar a milhares de quilômetros. Nada ficou inteiro, nem a minha relação com os Mata e por pouco, o relacionamento com a única Mata que eu prefiro manter próxima, a menos de quatrocentos quilômetros, a menos de um metro ou, se possível, a uma distância que não deixe o ar circular.

Durante os anos de prudência e eventualidade, eu fui o parente exótico, teimoso e modernoso, que assombrava a forma tão cômoda de viver de uma sociedade consolidada no imutável. Em contrapartida, representava também a ponta de status necessária para alcançar certa notoriedade na cidade dos Mata, marcada pelo ranço da inveja travestida de cordialidade. Parece paradoxal, mas é assim que funciona. Uma experiência similar à de sentir-se como um modelito novo desenhado para a próxima temporada, incerto de se é elegante ou ridículo, que passa pelo espelho sem convencer e desfila ciente de que pelo menos é capaz de chamar a atenção e de chocar. O certo é que sua combinação com as peças de estilo conservador tende a ser desastrosa.

Bem, mas voltemos ao chapéu exótico em que me vi convertido durante anos. Para o círculo dos Mata, eu era o genro de São Paulo ou da Espanha. Permanente e
suficientemente distante para ser misterioso, intocável, diferente, quase divino. Como ter uma pedra no sapato e garantir que é um diamante. Talvez uma ametista. Demasiado distante, contudo, para ser manipulado. Quem sabe não exatamente pela segurança que a distância permitia, mas por ela nos garantir certa autonomia. Sim, porque morar na cidade dos Mata é como jogar no campo do adversário, com regras novas, um juiz pouco neutro e condições climáticas adversas. Não para quem padece do mal do "voyeur social" como eu, mas pela necessidade obsessiva dos Mata em ter as pessoas sob seu absoluto controle e poder decidir seu destino. Como disse em ocasiões anteriores imagino seja esse o conceito de ajuda dos Mata, mas também é assim que se justificam tantos outros grupos do planeta que se dedicam a decidir o destino alheio e, para isso se unem, primeiro em grupos familiares, que evoluem a grupos de famílias nem sempre legais, chegam a formar partidos políticos em sistemas multipartidários que acabam por transformar em sistemas bipartidários e, por fim, em absolutistas.
 


Histórias de genes dominantes e recessivos
Meu sogro é loiro, os filhos dele, morenos, meu filho mais velho, loiro e o mais novo, moreno. Minha mãe, sofredora, meu pai, cabeça-fresca e eu, que fui um jovem preocupado, presa fácil da responsabilidade, faz alguns anos troquei a inseparável agenda por um bloquinho de anotações e decidi jogar o relógio no fundo da gaveta.

As metamorfoses a que a vida nos submete doem um bocado, contudo são um forte indício de que não somos um mero resultado de equações genéticas. Além disso, permitem certificar que somos capazes de tomar os caminhos mais surpreendentes e imprevisíveis, provável causa maior da emoção de viver, e paradoxalmente, a origem da agonia que nos provoca descobrir que tudo o que fizemos ou decidimos podia ter sido distinto, que podia ter-nos feito viver outra vida em lugar da que vivemos. Não se trata de começar a ser místico de repente ou atribuir ao destino o que não lhe é atribuível, mas de considerar o que é de verdade, conseqüência do livre alvedrio.

Como a decisão de ter outro filho, passados sete anos do nascimento do primeiro e como isso pode vir a ser determinante nas vidas deles e nas nossas. Ou como, cerca de uma década depois, nosso filho mais velho decide deixar nossa casa, afastando-se de toda possibilidade de seguir de perto as descobertas que o irmão tinha ainda por viver.

Visto daqui, desde o futuro, é fácil adivinhar o quanto cada um de nós teve a ver com essa decisão. Ele próprio, um convicto foragido das inconveniências, obcecado por uma alegria quase ditatorial que, mesmo sob epidermes regeneradas, costuma deixar as feridas abertas. Ou nós que, muito provavelmente, rejeitamos a enorme vantagem que a maior experiência nos proporcionava, inertes num mesmo patamar, desde onde ajudamos a reforçar um muro que insistíamos em golpear inutilmente, cada um desde seu lado. Intransigentes, negamo-nos a comprar a passagem de volta ao Brasil, bloqueando nossos já bastante contaminados canais de comunicação e permitindo que se abrissem outros, indesejáveis sobretudo naqueles momentos difíceis de discussões e confrontos.

Disso se valeu uma vez mais a matriarca dos Mata, especialista da rapinagem familiar. Armada do talão mais rápido do oeste não hesitou em apontar com seus cheques de alto calibre ao próprio neto, fazendo-o levitar, perseguindo o aroma do papel moeda, feito personagem de desenho animado. É possível que mesmo sem a ajuda da avó, o rapaz atordoado e sem rumo tivesse encontrado a forma de se afastar dos que naquele momento, representavam a necessidade de assumir responsabilidades, tão transcendentais como eminentes, mas sem dúvida aquela ponte elevadiça a Xanadú foi resolutiva ou ao menos, permitiu-lhe economizar uma complicada decisão.

Talvez, o passo dos anos pudessem ter corrigido rumos e compatibilizado gênios, algo que possivelmente nunca chegaremos a saber com certeza, tendo que nos conformar com os indícios. Se, então, a considerável diferença de idade não favoreceu a maior proximidade ou se o mais velho sentiu seu protagonismo ameaçado pela chegada do irmão, essas diferenças foram-se diluindo e eles, aproximando-se, apesar da distância de dez mil quilômetros. Sinto que não fomos capazes de protegê-los de mais essa desastrosa intervenção dos Mata. A mais dramática, que marcou o signo definitivo das nossas relações. Tampouco eu pude. Confesso que só o tempo permitiu recuperar-me do enorme impacto desse cruzado que me fez arquear, dobrar os joelhos e me manteve à beira do nocaute. Cheguei a agradecer o suposto presente de aniversário dado ao neto, a maçã envenenada que lhe roubou um futuro junto aos pais e ao irmão. Nossos destinos mudaram depois daquele dia. Nossas relações, também, algumas degradando-se até a completa extinção, enquanto outra saíram reforçadas, pela escassez. De fato, uma das maiores emoções que já vivi, e não foram poucas, foi o reencontro dos meus dois filhos depois de três anos. O mais velho veio passar o Natal conosco, sem avisar e fomos ao colégio do caçula que, nesses anos, tinha crescido muito, longe da vista do irmão e, agora era o mais alto dos dois. Quando se encontraram, atiraram-se literalmente, um em direção ao outro e fundiram-se num abraço impossível de apagar da memória e nele permaneceram durante muito tempo, chorando. Eu chorei. O velho bedel da escola, não se conteve e dissimulando sob um desajeitado sorriso, chorou. Emocionante e difícil de esquecer. Nem quero. Como tampouco quero esquecer quem fui, o que fiz, por que estou certo de que por muito que aparentemente tenha mudado, sigo caminhos que escolho graças aos critérios e seguindo as lições que um dia recebi da minha mãe, "la mamá", a verdadeira fundadora da saga.

Recentemente, cumpriram-se dez anos sem ela. Faz muita falta, aos filhos e aos netos. Foi-se com a capacidade física bastante limitada, mas intelectualmente ainda muito forte, já que dedicou boa parte do seu tempo à leitura, ao cinema e à música, não necessariamente aquela que se lhe atribuiria. Gostava das novidades, mas era seletiva. Tinha amigos jovens e muito poucos da sua idade. Em sua última lição, à distância, demonstrou-me como é possível amar sem pedir nada em troca, transformando-se na nossa principal incentivadora, apoiando os nossos projetos para que perseverássemos e nunca desanimássemos, mesmo que às custas do seu próprio sacrifício de não poder ter-nos tão próximos como ela desejaria. Tinha uma minoritária forma de ser honrada, mas destacava principalmente, sua coragem que nunca ostentava, mas que desembainhava e brandia ferozmente, nos momentos mais críticos. Insisto que era ainda muito cedo e que ela podia ainda viver muito, mas me pergunto até que ponto vale a pena viver de forma tão limitada.

Já meu pai, preferiu obviar totalmente a atividade intelectual e o mais perto que chegou da cultura foi durante as transmissões esportivas através da televisão. A atividade mental é equivalente à ginástica que dói ao mesmo tempo que fortalece, e ele, que sempre foi um homem forte, hoje em meio a um decisivo processo de declínio físico, não é capaz de encontrar qualquer tipo de motivação e nem o futebol é capaz de mantê-lo entretido.

É como se a nossa relação com a consciência e com o pensamento nos fizesse acometer da "síndrome de Estocolmo", que acaba por nos ligar afetivamente ao nosso próprio cativeiro, transformado em derradeiro companheiro de viagem, uma vez que todo o resto desistiu de tentar seguir nossa melodia, arrítmica e atonal. Aquilo que foi, num tempo passado, o lastre dos vôos mais arriscados acaba por se transformar em nosso único nexo, vital e essencial.

Possivelmente, aqueles que nos legaram seus genes, que aceitamos resignados e impotentes, buscavam garantir-nos a comodidade do pré-estabelecido, do programado. Contudo, ao mesmo tempo, com maior ou menor consciência, acabam por burlar suas cósmicas atribuições e insinuam-nos a existência das imperceptíveis cisões que nos permitirão reescrever nossa história.

Um dia descobri que não só podia encontrar esses verdadeiros mapas da ilha perdida com tesouros enterrados, escondidos entre os retorcidos caminhos das minhas relações ancentrais, mas também na inconsistente e frágil sabedoria da minha descendência.




Depois de muitos anos sem quase nenhuma notícia dos Mata, em dezembro de 2008 eles tentaram uma reaproximação, através de um e-mail enviado pelo meu cunhado, o caçula entre os varões, advogado de formação e dono de imobiliária por deformação, à irmã. Como se nada tivesse acontecido, ele nos convidava para uma festa familiar em que se celebrariam as bodas de ouro dos pais. Isso nos deixou indignados, não pelo convite em si, mas pela maneira unilateral que eles tem de virar as páginas, fingindo que nada fizeram, que sua ganância e mesquinharia nada destruiram lá por onde passeiam seus dotes de grandeza. Resolvi responder. E assim fiz então.

Quase um ano depois, abri minha caixa de correio de mensagens enviadas e reli-a. A sensação foi a de  ter cometido uma injustiça, não dando a oportunidade a todos os integrantes da quadrilha de conhecerem meus sentimentos. Por isso, aí vai a:
 

Carta aberta aos Mata (dirigida ao meu cunhado)
 

Sempre desconfiei daquelas festas que a sua mãe marcava, tentando e nunca conseguindo, transmitir uma sensação de família reunida e unida. Estou convencido  de que não existe nenhuma lei que obrigue alguém a fazer parte de uma família, que é só uma opção. O que existe é a necessidade de convivência social, de fazer parte de um grupo como forma de sentir-se fortalecido. Em alguns casos, chega a ser patológico e responde às frustrações e sentimentos provocados por vivências justamente inversas, sem afeto e sem relação familiar. Pura carência. E sua mãe é uma pessoa extremaente carente e provavelmente  quanto mais ela tenta mascarar e negá-lo, inventando reuniões familiares fracassadas, mais se agrava o seu quadro. “Não sou uma pessoa mal amada", deve repetir diante dos espelho várias vezes ao dia. Inútil tentativa de se autodissuadir de que foi mal amada pelos pais, de que é mal amada pelo marido. Os filhos até tentam, mas é ela que não deixa por que não sabe, não aprendeu, ninguém ensinou nem praticou com ela. Entendo, apiedo-me e sei que isso leva à frustração e a extrema infelicidade. Mas isso não lhe dá o direito de fazer a infelicidade dos demais. É a principal responsável pela dizimação da minha família, cuja união e amor ela nunca conseguiu entender e que sempre invejou. Aproveitou-se da minha ausência e do meu único momento de fragilidade, depois da morte da minha mãe, para invadir minha casa, "raptar" meu filho, vender minha casa de “sampa” por um terço do preço, além de tentar colocar a minha mulher, sua filha contra mim, continuamente.
 

Na verdade eu sempre soube desse obscuro mundo interior da matriarca, mas nunca me importou se ela estava casada com um mesquinho que não sabe amar ou se entre ambos produziram criaturas sem nenhuma moral ou escrúpulo, até que o relacionamento com essa lamentável parcela da representação humana alcançou níveis de convivência quase diária em 2002.
 

Durante duas décadas aturei que aves de rapina como o seu irmão, se aproveitassem de uma condição financeira de dificuldade da própria irmã para ganhar dinheiro às nossas custas. Aliás, aproveito este momento para desfazer uma injustiça já que por muito tempo, achei você era o pior de todos. Sinto muito mas, como sempre, você perdeu para o seu irmão, ele é insuperável, vergonha da existência humana, asqueroso, uma das piores pessoas que conheci, mesquinho como o pai, mas com certo requinte, capaz de aproveitar-se dos filhos, dos irmãos, que dirá do cunhado. Você, ao contrário, não passa de um pobre idiota preciso de auto-afirmarção, que necessita cercar-se o tempo todo de seres insignificantes e bajuladores para poder se sentir importante, mas que no entanto, nunca seria capaz de se aproveitar  de um filho, o que não significa que não tenha demonstrado ser um pai tão desastroso como todos eles.
 

Depois de tudo, gostaria de agradecer pelo muito que vocês me ensinaram, fazendo-me experimentar  novos sentimentos, como por exemplo o rancor, que nunca, na minha vida de mais de meio século tinha sentido. Ou o desprezo que também aprendi a sentir com (e por) vocês. Suponho que só depois de conhecê-los muito bem e conseguir desenvolver essa faceta é que eu posso entender a minha existência como completa.
 

Ingênuo, esperei um pedido de desculpas que nunca veio - nunca vi um Mata reconhecer um erro, já que vocês costumam encobrí-los com outros, nem pedir desculpas -. Sinal de insegurança e de que são conhecedores da propria insignificância. Era tão fácil. Era só pedir desculpas, não vale alegar como motivo a distância, já que existem e espero que vocês conheçam, as novas tecnologias, tais como telefone, internet ou, mesmo algumas velhas e todavia eficientes como o correio. E eu tenho certeza de que mesmo sem reconhecer, vocês sabem perfeitamente a gravidade do que fizeram.
Agora, o único que eu peço é que me esqueçam. Falo por mim.

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